domingo, 1 de março de 2020

100 anos de solidão

A vida é estranha. Um dia está tudo bem. Tudo perfeito. No outro, nada está bem. Qualquer aspecto da vida de qualquer pessoa pode mudar com muita rapidez. Para melhor ou pior. Um emprego novo, uma morte inesperada, o fim de um longo relacionamento, o começo de um novo relacionamento, uma mudança de casa, uma nova amizade, o fim de uma antiga amizade. Qualquer coisa. A qualquer momento.

Somos fortes perante as adversidades. Procuramos um sentido para tudo. Deus. Espiritualidade.  Pseudociência. Tentamos entender a mente, saber como reagir, suportar, lidar. E seguimos em frente. Claro, entendo que uma pessoa ou outra não consegue. Mas são exceções - e respeito muito quem tem a coragem necessária para desistir. Enlutados, solitários, confusos, tristes, miseráveis, presos, sufocados, seguimos. 

A vida é estranha e solitária. Solidão é um aspecto inerente à vida. Mas é algo que pouquíssimas pessoas ousam encarar, mesmo que só por algum momento. Todos somos criaturas extremamente solitárias e buscamos todo o tipo de panaceia para isso. Mas não há religião ou relacionamento que nos livre de nossa solidão. Alguém pode dizer "eu não concordo. Eu não me sinto assim." Mas sabemos que isso será uma mentira. A solidão, em última instância, vem da falta de lugar no mundo. Da falta de propósito. Quanto mais a pessoa entende dos mecanismos da existência, da rotina, das pessoas e do que é realmente viver, mais sozinha ela se sente. Há quem encontre conforto na espiritualidade e em qualquer religião. É, ao meu ver, um tipo de enganação que só pode ter um dos dois motivos: por ignorância ou por fraqueza. Ignorância no sentido de acreditar piamente em tudo sem nunca contestar e tirar daí sua força. E fraqueza por não querer transcender o fino véu do conforto religioso e espiritual e encarar o vazio adiante. 

Há também quem encontre conforto em outra pessoa. Acredito que este tipo de solução para a solidão seja mais benéfico do que a anterior, porque uma outra pessoa pelo menos existe e não é um apanhado de mentiras loucas usadas para enganar, persuadir e controlar as pessoas. Isso é, se o relacionamento for saudável. O problema é que pessoas vem e vão. Portanto, quem busca esta fuga para a solidão, ou passa de um relacionamento para outro e encontra o maior amor da vida todo ano em uma pessoa diferente, ou se sente extremamente e eternamente sozinho por ter perdido este amor. Claro, eu sei que a maioria das pessoas encaram relacionamentos como são, apenas relacionamentos, e não como uma salvação (deixo aqui um parêntese de peito aberto e deveras constrangido: vejo essas histórias de casais juntos há décadas e décadas e décadas que ainda se amam e convivem bem até o fim de seus dias e meu coração se enche de ternura e amor. Eu ainda realmente acredito em algo assim. É raro e mágico, mas existe. Sim, eles ainda têm a solidão em suas vidas. Mas, em momentos extremos sabem que têm um ao outro).

Sou 100% funcional, como qualquer pessoa normal. Trabalho, faço minha academia, tenho meu círculo social, meu relacionamento. Viajo sempre que posso, visto-me bem, uso perfume,  faço a barba, uso até gravatas e cachecóis, evito conflitos desnecessários, discussões, tento resolver tudo através de muito diálogo, enfim, cuido de meu exterior e de meu interior. Tento manter a sanidade e seguir em frente. E até o momento, creio que tenho me saído muito bem. Minha vida tem caminhado para a frente - não como planejei, mas mesmo assim, adiante. 

No entanto, há a solidão. Fui uma pessoa solitária por toda a minha vida. Por evitar amizades superficiais e que não acrescentam em nada, por evitar amizades que existiam apenas para que eu não me sentisse sozinho, sempre convivi com a solidão. Algumas vezes ela é reconfortante, porque sei lidar com ela. Mas em outras ela é pesada, densa e sufocante. 

De um dia para o outro tomei um golpe neste sentido. Sem planejamento. Sem aviso. Apenas aconteceu. E agora, a solidão que era apenas neblina virou granizo - e chove em mim. Por quanto tempo, não sim. Sei que continuarei. Sou resiliente. Só eu sei os demônios que já enfrentei, os leões que já matei. Mas confesso: não é fácil viver em solidão, com esse nó na garganta e esse ímpeto de se isolar cada vez mais. Nunca foi fácil. E agora viver assim ficou ainda mais pesado e denso. Este é o meu fardo, o da solidão. E, mais ou menos pesado, é o fardo que todos nós precisamos carregar.


*Escrevi este texto usando como trilha sonora algumas das fugas de Bach. Dizem que Beethoven foi o maior. Wagner, o mais épico. Mozart, o mais genial e ousado de seu tempo. Encontro em Arvo Part a melancolia que tenho em mim, mas nem sempre consigo encará-lo. Mas Bach não emana em suas músicas um aspecto da vida, seja ele emocional ou técnico. Bach transcende a própria vida. E o que há depois da vida? O divino. Encontro meu Deus, minha espiritualidade, na música. E a música que chegou mais perto dos céus foi a de Bach. Ele me ajuda a seguir em frente. Coloco meus fones e durmo com uma sensação de estar abraçado com Deus. Um Deus verdadeiro, sonoro, que vive na música. (no vídeo abaixo deixo um arranjo da "Pequena Fuga" para orquestra, feito pelo maestro Stokowski).






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