Às
vezes demoramos para notar isso. Às vezes ouvimos a mesma música por
anos, até que um dia a epifania acontece. Então passamos a ter a certeza
e ver com clareza que tal música é de fato maior do que a vida. Isso me
acontece de tempos em tempos. Neste ano de 2019 aconteceu duas vezes.
Falarei aqui sobre a música da segunda ocasião. A música é “The Last
Time I Saw Richard”, da Joni Mitchell.
Ouço
“Blue” desde que me entendo por gente. E desde a primeira audição,
sempre achei um dos maiores álbuns músicais já feitos. Como disse Renato
Russo, na introdução do cover feito para o Mtv Acústico da Legião
Urbana: é uma das maiores poetas do rock’n roll e é uma letra seríssima.
O
álbum de 1971 é como uma viagem por diversos sentimentos, mas sempre
com um tom melancólico (o título da obra não se refere a uma cor,
afinal). Desde o começo, com “All I Want”, até o encerramento com “The
Last Time I Saw Richard”, às vezes enfrentar uma audição detalhada e
atenciosa pode ser uma quasi-tour-de-force, principalmente se você for
uma pessoa mais empática ou com tendência a ficar “na bad” depois de
apreciar uma obra densa. Ao longo dos anos as minhas músicas preferidas
mudaram. Lembro bem que minha primeira preferida foi “All I Want”.
Depois de alguns anos passou a ser “River” e, ultimamente, era “A Case
Of You” (que continua a ser uma das mais belas composições da música
pop!).
Sempre
encarei “The Last Time I Saw Richard” como aquela música que a Legião
Urbana tocou. Por isso, e por ser a última composição do lado B, ela
nunca chamou minha atenção. Até agora.
Após uma introdução ao piano, Joni canta:
The
last time I saw Richard was Detroit in ‘68 // And he told me // all
romantics meet the same fate someday // Cynical and drunk and boring
someone in some dark cafe // You laugh, he said you think you’re immune,
// go look at your eyes //They’re full of moon // You like roses and
kisses and pretty men to tell you // All those pretty lies, // pretty
lies // When you gonna realize //they’re only pretty lies//Only pretty
lies, just pretty lies…
E
isso me atingiu como um soco. Tornei-me Richard, afinal. Ou pelo menos
tive o destino que, segundo ele, os “românticos” tendem a encarar algum
dia. Como alguém que lia Goethe e fantasiava vidas inteiras com garotas
que me diziam “oi” com um sorriso aos 16 anos de idade, creio que tenho
propriedade para falar sobre o assunto.
Nada
mais natural do que, com o passar dos anos e com as experiências,
abandonar o romantismo e notar que a vida real não pode ser fantasiosa,
perfeita ou trágica. No entanto, para alguém que afundou sua juventude
em poetas e escritores românticos, quase não há alternativa a não ser
trocar tudo isso por uma visão cínica, fria e realista sobre qualquer
relacionamento. Mas a letra da canção segue:
He
put a quarter in the Wurlitzer, and he pushed //Three buttons and the
thing began to whirr //And a bar maid came by in fishnet stockings and a
bow tie //And she said drink up now it’s gettin’ on time to close
//Richard, you haven’t really changed, I said //It’s just that now
you’re romanticizing some pain that’s in your head //You got tombs in
your eyes, but the songs //You punched are dreaming //Listen, they sing
of love so sweet, love so sweet //When you gonna get yourself back on
your feet? //Oh and love can be so sweet, love so sweet…
Ao
não mais romantizar relacionamentos, passei a romantizar a dor, o vazio
e a frustração que ocorriam com a falta deles (ou por causa deles). No
entanto, se ninguém consegue ser feliz o tempo inteiro, ninguém também
consegue ser uma pessoa amarga o tempo todo.
Por
isso, apesar de tudo, continuei (continuo) a me cercar de belas obras.
Afinal, os poetas românticos ainda são impecáveis, as pinturas de
Turner, R. Wilson, Konstantinovich e tantos outros ainda evocam
profundos sentimentos e sensações e todos os clichês e repetições da
música pop ainda me arcertam em cheio a cada nova canção de amor.
Na
real, não dá para seguir sem estas coisas. É por isso que em todo natal
revejo “The Shop Around The Corner” e ainda me emociono. Precisamos
disso – por mais que isso seja apenas uma romantização cafona e efêmera.
Richard
got married to a figure skater/And he bought her a dishwasher and a
Coffee percolator//And he drinks at home now most nights with the TV
on//And all the house lights left up bright//I’m gonna blow this damn
candle out//I don’t want Nobody comin’ over to my table//I got nothing
to talk to anybody about//All good dreamers pass this way some
day//Hidin’ behind bottles in dark cafes//Dark cafes//Only a dark cocoon
before I get my gorgeous wings//And fly away//Only a phase, these dark
cafe days.
São
fases, afinal. Em um dia acreditamos no amor como a única salvação. No
outro, somos cínicos bêbados e entediantes. Mas há uma constante, sempre
a mesma, sempre necessária e real: a arte. E foi assim que “The Last
Time I Saw Richard” se tornou a minha canção preferida do álbum. Uma
canção maior do que a vida.
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