Fôssemos merecidos de água, de chão, de rãs, de árvores, de brisas e de graças! Nossas palavras não tinham lugar marcado. A gente andava atoamente em nossas origens. Só as pedras sabiam o formato do silêncio. A gente não queria significar, mas só cantar. A gente só queria demais era mudar as feições da natureza. Tipo assim: Hoje eu vi um lagarto lamber as pernas da manhã. Ou tipo assim: Nós vimos uma formiga frondosa ajoelhada na pedra. Aliás, depois de grandes a gente viu que o cu de uma formiga é mais importante para a humanidade do que a Bomba Atômica.
Um poema do incomparável Manoel de Barros, para começar a semana com simplicidade, humor e beleza.
Leio poemas durante a madrugada; é um bom modo de pegar no sono, entre versos e rimas. E que sonhos eu tenho!
Algo sempre acontece quando viajo de moto: mesmo com o sol a pino, sem nenhuma indicação de chuva, uma tempestade aparece. Já encarei uma muito parecida com a da foto abaixo, com raios caindo ao meu redor em um barulho ensurdecedor, chuva forte e ventania. Eu não tenho medo e não paro para esperar que passe. Na verdade, adoro viajar na chuva. Abro um sorriso na rodovia quando vejo tudo negro à frente. Entro com tudo na chuva e viajo assim sem problemas, leve o tempo que levar.
Como canta Gessinger: Hoje o céu está pesado//Vem chegando temporal. E mais uma vez vou pegar a estrada. Com um sorriso no rosto. E isso não tem nada a ver com o destino. A viagem em si é a realização.
Estava em uma espécie de camping ou algo do tipo. Andava pelas redondezas, examinava os detalhes da natureza. Mas logo eu precisava ir para alguma cidade, e uma tia me deu carona. ela dirigia de uma forma muito lenta e atenciosa.
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Cheguei na cidade e uma amiga me disse: "conversa com ela. Ela tem a cabeça meio complicadinha e cheia de coisas, mas vai adorar te ver. Vai fazer bem pra ela". Ela estava no sofá, lendo algo impresso em papel sulfite, e não me viu chegar. Olhei por cima das folhas e ela sorriu. Então deitei ao seu lado, peguei as folhas e comecei a ler com uma voz engraçada. Ela se aninhou em mim, com um sorriso no rosto, e ficamos assim até o sonho acabar.
Um bom dia
Acordei e desliguei o alarme do telefone. Vi que tinha algumas mensagens de uma pessoa com a qual nem tenho intimidade ou muito contato. Ela me elogiou. Algo assim, simples e totalmente inesperado, às vezes é tudo o que precisamos para começar o dia bem.
Às
vezes demoramos para notar isso. Às vezes ouvimos a mesma música por
anos, até que um dia a epifania acontece. Então passamos a ter a certeza
e ver com clareza que tal música é de fato maior do que a vida. Isso me
acontece de tempos em tempos. Neste ano de 2019 aconteceu duas vezes.
Falarei aqui sobre a música da segunda ocasião. A música é “The Last
Time I Saw Richard”, da Joni Mitchell.
Ouço
“Blue” desde que me entendo por gente. E desde a primeira audição,
sempre achei um dos maiores álbuns músicais já feitos. Como disse Renato
Russo, na introdução do cover feito para o Mtv Acústico da Legião
Urbana: é uma das maiores poetas do rock’n roll e é uma letra seríssima.
O
álbum de 1971 é como uma viagem por diversos sentimentos, mas sempre
com um tom melancólico (o título da obra não se refere a uma cor,
afinal). Desde o começo, com “All I Want”, até o encerramento com “The
Last Time I Saw Richard”, às vezes enfrentar uma audição detalhada e
atenciosa pode ser uma quasi-tour-de-force, principalmente se você for
uma pessoa mais empática ou com tendência a ficar “na bad” depois de
apreciar uma obra densa. Ao longo dos anos as minhas músicas preferidas
mudaram. Lembro bem que minha primeira preferida foi “All I Want”.
Depois de alguns anos passou a ser “River” e, ultimamente, era “A Case
Of You” (que continua a ser uma das mais belas composições da música
pop!).
Sempre
encarei “The Last Time I Saw Richard” como aquela música que a Legião
Urbana tocou. Por isso, e por ser a última composição do lado B, ela
nunca chamou minha atenção. Até agora.
Após uma introdução ao piano, Joni canta:
The
last time I saw Richard was Detroit in ‘68 // And he told me // all
romantics meet the same fate someday // Cynical and drunk and boring
someone in some dark cafe // You laugh, he said you think you’re immune,
// go look at your eyes //They’re full of moon // You like roses and
kisses and pretty men to tell you // All those pretty lies, // pretty
lies // When you gonna realize //they’re only pretty lies//Only pretty
lies, just pretty lies…
E
isso me atingiu como um soco. Tornei-me Richard, afinal. Ou pelo menos
tive o destino que, segundo ele, os “românticos” tendem a encarar algum
dia. Como alguém que lia Goethe e fantasiava vidas inteiras com garotas
que me diziam “oi” com um sorriso aos 16 anos de idade, creio que tenho
propriedade para falar sobre o assunto.
Nada
mais natural do que, com o passar dos anos e com as experiências,
abandonar o romantismo e notar que a vida real não pode ser fantasiosa,
perfeita ou trágica. No entanto, para alguém que afundou sua juventude
em poetas e escritores românticos, quase não há alternativa a não ser
trocar tudo isso por uma visão cínica, fria e realista sobre qualquer
relacionamento. Mas a letra da canção segue:
He
put a quarter in the Wurlitzer, and he pushed //Three buttons and the
thing began to whirr //And a bar maid came by in fishnet stockings and a
bow tie //And she said drink up now it’s gettin’ on time to close
//Richard, you haven’t really changed, I said //It’s just that now
you’re romanticizing some pain that’s in your head //You got tombs in
your eyes, but the songs //You punched are dreaming //Listen, they sing
of love so sweet, love so sweet //When you gonna get yourself back on
your feet? //Oh and love can be so sweet, love so sweet…
Ao
não mais romantizar relacionamentos, passei a romantizar a dor, o vazio
e a frustração que ocorriam com a falta deles (ou por causa deles). No
entanto, se ninguém consegue ser feliz o tempo inteiro, ninguém também
consegue ser uma pessoa amarga o tempo todo.
Por
isso, apesar de tudo, continuei (continuo) a me cercar de belas obras.
Afinal, os poetas românticos ainda são impecáveis, as pinturas de
Turner, R. Wilson, Konstantinovich e tantos outros ainda evocam
profundos sentimentos e sensações e todos os clichês e repetições da
música pop ainda me arcertam em cheio a cada nova canção de amor.
Na
real, não dá para seguir sem estas coisas. É por isso que em todo natal
revejo “The Shop Around The Corner” e ainda me emociono. Precisamos
disso – por mais que isso seja apenas uma romantização cafona e efêmera.
Richard
got married to a figure skater/And he bought her a dishwasher and a
Coffee percolator//And he drinks at home now most nights with the TV
on//And all the house lights left up bright//I’m gonna blow this damn
candle out//I don’t want Nobody comin’ over to my table//I got nothing
to talk to anybody about//All good dreamers pass this way some
day//Hidin’ behind bottles in dark cafes//Dark cafes//Only a dark cocoon
before I get my gorgeous wings//And fly away//Only a phase, these dark
cafe days.
São
fases, afinal. Em um dia acreditamos no amor como a única salvação. No
outro, somos cínicos bêbados e entediantes. Mas há uma constante, sempre
a mesma, sempre necessária e real: a arte. E foi assim que “The Last
Time I Saw Richard” se tornou a minha canção preferida do álbum. Uma
canção maior do que a vida.
Nunca fiz este tipo de coisa. Nesta passagem de ano foi a primeira vez que realmente me dei ao trabalho de criar objetivos, metas e caminhos para o ano novo. Não pensei em muitas coisas - porque cumprir mesmo poucas resoluções pode ser algo difícil. Bem, vamos a elas:
1 - trocar meu veículo. Tenho a mesma moto há 12 anos. Visualmente ela está feia: suja, com alguns amassados e falhas na pintura. Mas não me importo com isso e o que importa está novo. Troco o óleo, uso somente combustível de confiança e eu mesmo faço revisões periódicas. Mas minha moto é pequena, e isso dificulta longas viagens (dificulta, mas não impede). Ainda não sei se pego uma moto maior ou um carro. O mais importante eu já consegui, que é o valor. Enquanto não decido, junto mais uma grana enquanto espero.
2 - praticar exercícios. Bem, não é uma resolução tão nova, uma vez que tem mais de 2 anos que faço musculação. A novidade/resolução diz respeito a exercícios aeróbicos. Comecei bem de leve. Mas está dando certo.
3 - dedicar mais tempo e atenção a mim mesmo. Esta é a resolução mais importante. Eu parei de correr atrás de pessoas que não se esforçam pra estar comigo. Antes, se alguém me chamava para fazer algo, eu sempre topava, mesmo sem vontade. Agora, aprendi a dizer não. Aprendi a fazer o que realmente quero. Em vez, por exemplo, de viajar debaixo de chuva por mais de uma hora para estar com alguém que pouco se importa comigo, estou aqui em meu quarto, deitado confortavelmente em minha cama. Amanhã acordarei cedo para me exercitar. Vou rever uma pessoa que é uma grande amiga à noite. E durante o dia quero ler muito. E isso não poderia me deixar mais feliz. A partir deste ano vou viver assim, fazendo só o que quero, o que me faz bem, e vou deixar as chateações e prováveis decepções de lado. Não gosto de pensar no quanto já me sacrifiquei para agradar certas pessoas. Mas pelo menos agora (sim, a palavra da vez é "agora") eu mudei.
Resumindo: o ano mal começou e eu já consegui cumprir minhas resoluções. Este ano tem tudo para ser um grande ano. E será.
Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado.
À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito do amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos d'água.
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais - eu sei, qualquer um o sabe!
O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração - em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável não para os versos
deveras.
Essa expressão tão comum é sempre usada quando queremos dizer que sentimos saudade de alguém. Mas saudade é uma palavra deveras profunda e significativa e pode se aplicar não só a pessoas, mas a objetos e épocas.
Sentir a falta de alguém. Se a saudade é uma espécie de desejo, de intenção de mais uma vez ter ou estar com alguém, com algo ou em algum lugar ou situação, sentir a falta é um tanto diferente.
Corte para a primeira pessoa.
Eu sinto a sua falta. Sinto o vazio de cada lugar em que você não está. Sinto o silêncio de cada palavra ou risada que você não deu. A falta em si não é um sentimento, mas ela provoca muitos, que vão da leveza nostálgica provocada por uma lembrança à tristeza provocada por outra.
A falta, a SUA falta, tem um peso, deixa um buraco. Esse vazio é preenchido com sentimentos, bons e ruins, que tentam capturar como era estar com você e como é não estar. Falta é um peso com o qual tenho que conviver. Carrego esse peso onde quer que eu vá. Em alguns dias, mal noto. Em outros, seguir em frente fica difícil, porque o peso é sentido. Mas a vida também é sobre isso: seguir em frente. E sigo.
A foto acima, que ilustra o cabeçalho deste blog, é de minha autoria. Foi tirada no inverno de 2009, com uma Rolleiflex sl 35 e filme Kodak vencido. Fui de moto até uma ponte que fica a uns 8 km de onde moro. Tirei algumas fotos e voltei para casa. Era um dia nublado e frio. Não tenho mais a câmera, mas ainda tenho alguns rolos de filmes. Quem sabe um dia eu consigo uma nova analógica para fotografar o mundo em um inverno qualquer...
Eu adorava as videolocadoras. Mesmo no auge do torrent eu ainda alugava dvds. Era incrível poder passar os olhos pelas capas, ler cada sinopse e escolher algumas companhias para o fim de semana. Descobri tantos filmes bons assim...
Em minha cidade, eu frequentava muito 3 locadoras.Uma era da rede 100% Video, concorrente de gigantes de outrora, como a Blockbuster. Aluguei centenas de filmes ali, a maioria ainda em VHS. Sempre havia promoções e eu adorava as revistas mensais com notícias do mundo do cinema. Esta rede agonizou até meados de 2017, quando finalmente fechou.
Depois passei a alugar na Locadora do B*to (deixo o * para não indexar em buscas do google). Era uma das mais antigas da cidade. Eu sempre pegava 5 ou 6 dvds de uma só vez lá. Era conhecido do dono e sempre conversávamos enquanto eu pesquisava tranquilamente quais levaria comigo.
Por último, passei a pegar meus filmes em uma locadora que foi aberta em uma garagem de uma casa, juntamente a um cômodo anexo. Parecia, à primeira vista, uma dessas locadoras insignificantes de periferia. Mas ali dentro a mágica acontecia. O dono era cinéfilo, um verdadeiro amante do cinema, e, além disso, ele amava música e conhecia MUITA coisa. Cada vez que eu aparecia por lá, ficava por 3 horas ou mais conversando com ele. Desenvolvemos uma sincera amizade e sempre falávamos sobre música e cinema. Foi uma época incrível, de aprendizado e troca de experiências. Um tempo depois ele fechou a locadora e, após alguns anos, faleceu repentinamente. Ao ler a notícia de sua morte, por acaso, fiquei um tanto abatido - e ainda sinto ao pensar nisso.
Essas experiências em videolocadoras não existem mais. Com serviços de streaming ficamos em nossos quartos e temos tudo ali. Essa época das videolocadoras e minha experiência com elas é uma dessas pequenas coisas que acontecem em nossas vidas, das quais sempre nos lembraremos com afeto e com um sorriso no rosto. Sempre.
Uma das últimas coisas realmente positivas e significativas que fiz em minha vida foi criar um Clube de Leitura. Lemos uma obra e nos reunimos uma vez por mês. A escolha se dá por votação entre os membros. Em quase um ano, passamos por temas como distopias, romances históricos, livros de terror, autores brasileiros, autoras negras e alguns mais.
Li muitas obras que, se não fosse pelo clube, jamais teria lido. Conheci pessoas incríveis e consegui subverter a questão do leitor solitário. Tem sido uma experiência e tanto poder ler em conjunto e fico realmente feliz com cada reunião.